Há muitos anos, algo enorme e único aconteceu. Algo enorme nascido aparentemente da soma de pequenas coisas: um aparelho abandonado, um punhado de pó azul que brilhava à noite. Por pequenas coisas, muitos corpos foram atingidos. Muitas casas, muitas pessoas. Muitas gerações. Muitos anos agora se passaram. Mas não é o suficiente para restituir esse algo em forma de verdade. Aliás, quem possui o poder da palavra pública trabalhou como em um roteiro teatral para distribuir os papéis e as responsabilidades do modo mais conveniente. Para quem dele se lembra, esse algo é um episódio grave, nascido da curiosidade de pessoas à margem, culpadas porque inocentes, porque inconscientes. Culpados porque a curiosidade é das crianças. E o imaginário coletivo os traduziu exatamente assim, como crianças, e esse algo se tornou fantástico, mágico, surreal e atroz como somente os contos de fada conseguem ser. VOID é um objeto teatral feito escórias radioativas, de vozes, de omissões, de palavras que não significam o que significam. De experiências, de sentidos. De sons. De recorrências, fazendo do passado um espectro distópico que a qualquer momento pode tomar forma no nosso presente.
A narrativa principal do nosso trabalho é um episódio trágico que mobilizou e emocionou, na década de 80, a opinião pública brasileira e internacional, e as narrativas relacionadas direta ou indiretamente a ele: O desastre radiologico de Goiânia, lembrado também como o acidente do Césio 137. Partindo das pesquisas sobre esse episódio, o espetáculo não percorre um caminho documental, mas sim de exploração das possibilidades, impulsionando o espectador a trafegar entre a incredulidade e a versão oficial.
A carga simbólica dessa catastrofe é muito significativa. A justaposição das contradições sociais, econômicas, geopolíticas, que emergem dessa tragédia, parecem uma metáfora sombria do Brasil contemporâneo. O limiar entre realidade e representação é muito incerto. O parcial desaparecimento desse evento da memória coletiva nos faz até duvidar do seu real acontecimento. Essa incerteza é o eixo da nossa pesquisa teatral.
sobre o desastre radiológico de Goiânia
Em 1987, transição entre a ditadura e o período democrático, na cidade de Goiânia dois jovens encontram no abandonado Instituto Goiano de Radioterapia um antigo aparelho radioterápico. Eles desmontam o equipamento e o vendem para um ferro-velho da cidade. No interior do maquinário havia um núcleo de material radioativo, Césio 137, pó azulado que em ambientes escuros possui tom luminescente. O material chamou atenção do dono do ferro-velho que levou a substância radioativa para a família e acabou por se espalhar pela cidade. Oficialmente, foram contabilizadas 4 mortes, 151 contaminados graves e 1143 pessoas afetadas pela radiação do Césio 137. A Associação das Vítimas do Césio 137 afirma que até o ano de 2012, quando o acidente completou 25 anos, cerca de 104 pessoas morreram nos anos seguintes pela contaminação, decorrente de câncer e outros problemas, e cerca 1600 tenham sido afetadas diretamente.
“Em Psicotrópico, meu espetáculo anterior, isolei uma lembrança particular, para mim muito significativa, e a multipliquei e a sobrepus a outras narrativas ficcionais de alguma maneira especulares à minha lembrança. Eu procurava assim "polinizar", com os meus fragmentos de memória, a memória do espectador. VOID é, ao mesmo tempo, uma expansão e uma inversão dessa experiência sobre os deslocamentos de percepção da realidade. Ao longo do espetáculo tento lembrar algo que não pertence à minha memória, mas à do público. Somando incertezas à minha incerteza, é o público que "poliniza" o espetáculo. É nos vazios narrativos que o público lembra, pode lembrar, pode reinventar sua memória." Alvise Camozzi
Em sua estreia VOID se apresentou como projeto multimídia. O projeto contemplou juntamente ao espetáculo, uma instalação sonora, híbrida ao espaço cênico, que promovia a interatividade entre os próprios visitantes e entre os visitantes e o espaço, complementando a experiência do espetáculo.
A instalação pode ser realizada quando o espetáculo se apresentar dentro de uma programação de pelos menos 4 dias consecutivos, ou dentro de programas de residência ou ocupação.